Crítica Teatral – Espetáculo Final da Tarde – Grupo Teatro de Caretas
A rua não tem fim
Paulo Renato
Abreu
Final da Tarde
é um abraço que o grupo Teatro de Caretas dá na rua. O espetáculo é um
passaporte oferecido ao transeunte, que escolhe se quer ou não seguir os
rastros de uma família desnudada na calçada. A montagem se monta no contato com
quem passa e, por isso mesmo, arrebata e envolve. As cenas nos fazem diminuir o
passo e viver aquela história como se fosse nossa.
“É
encenação”, avisou uma senhora que passava na rua Quarenta e Cinco, no
Maracanaú, enquanto a obra cênica se desenrolava durante o Festival Nacional de Teatro de Rua do Ceará. De
crucifixo no peito e blusa azul da loja de eletrodoméstico, um senhor rebateu:
“É a realidade da vida”, disse, entendendo que aquela ficção se confunde com a
nossa intimidade.
A
cidade não é um cenário, ela protagoniza. Enquanto Whilddy agoniza diante de
comércios, carros, bicicletas. A personagem, que guia a história, revela ao
público passagens importantes da sua vida. Entre os momentos, a cena de quando
ela tinha 13 anos e foi obrigada a casar com Manoel, que posteriormente deu de
ombros para a família construída em ruínas. Quem também tem espaço nessa trama
íntima é a filha do casal, a travesti Ofélia das Águas.
A dramaturgia não é cronológica. Flui como uma crônica,
dessas de um escritor que vem e vai no tempo a cada novo parágrafo. Sem
pretensão de explicar quando a história começa ou termina, Whilddy simplesmente
surge, enquanto o sol se deita. Fotos ao chão ajudam a entender os fluxos
seguidos pela trama, que nos mostra o quão parecido é qualquer diálogo em
família. “Não fala na frente do povo”, pede a mãe à filha Ofélia, enquanto as
duas confidenciam medos no meio do povo.
O
texto faz lembrar o poeta curitibano Paulo Leminski, que disse: “Ainda vão me
matar numa rua quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente
que pensa que a rua é a parte principal da cidade”. E é exatamente esse
sentimento que Ofélia das Águas no deixa. A história também evoca as palavras
do escritor carioca João do Rio, que diz que a rua nos torna irmãos porque nos
“une, nivela e agremia”.
Nesse balaio ao ar livre, o casamento é o ápice do fim de
tarde. É quando o fogo corre a rua e a mulher percebe que não poderá mais
voltar a ser quem era. Como um cortejo de morte, o público é convidado a seguir
os passos daquela mulher obrigada a estar ao lado de quem ela não ama. Com mãos
cheias de arroz, o transeunte apedreja aquele desamor.
Já a carta que revela a partida de Manoel é lida (e
gritada) pelos desconhecidos, já que a mulher abandonada não sabe ler. O
próprio público é quem ajuda Whilddy a entender a dor. “É assim mesmo”, disse a
senhora sentada em banquinho de plástico, compartilhando um sentimento que é
seu e da personagem.
O espetáculo emociona e confunde, deixando o gosto da
sidra barata de uma celebração interrompida. Marejados e desguiados, os olhos de
que assiste ao espetáculo sintetizam as divergências de histórias que a urbe
nos oferece. A peça tem 50 minutos, mas parece durar o tempo de um aperto de
mão casual que se dá naquele ex-amor que a gente encontra casualmente numa
esquina. A história de Whilddy promove, ali mesmo no calçamento, nosso reencontro
com o tempo em que rua não era só um corredor.
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